quinta-feira, 12 de junho de 2008

O “DAY AFTER” DA SOCIEDADE TERCIÁRIA

Um amigo de afirmou outro dia que se sentia no contrapé da história. Contrapé, como se sabe, é aquele estado em que o goleiro se atira na direção da bola mas esta se desvia no caminho e muda de direção, deixando-o no vazio. É também como na famosa e premiada fotografia do Sr. Jânio Quadros, em que seus pés se entrecruzam, como se perdidos de rumo. Diz-se igualmente que teria sucedido com os dinossauros, quando estes desapareceram. Tal era a gravidade da situação do meu amigo. Havia percorrido um longo trajeto profissional, assumindo responsabilidades cumulativas em algumas poucas empresas, entre privadas e públicas, mais destas que daquelas, ocupando cargos qualificados e preparando-se para uma justa retirada no fim da estrada.
Tendo se preparado para alcançar e manter bons empregos, seguros e bem remunerados, só trocando algum por outro mais interessante, e se possível acumulando seus benefícios, chegando finalmente à gratificante aposentadoria, de repente se viu estranho diante de um cenário que não estava previsto no dia anterior. Despertou em nova e estonteante realidade. Sua vida de assalariado rapidamente perdeu certeza. Os vizinhos, pessoas conhecidas e alguns amigos, eram todos “microempresários”, “homens/mulheres de negócios”, “empreendedores”, “intermediários”, “informais”, qualquer coisa menos empregados. E salário já não parecia remunerar melhor que outras formas de trabalho.
Meu amigo me faz pensar. O emprego tradicional encurtou, uma nova lógica de organização do trabalho ensaia entrar em cena. Por enquanto, sem as garantias necessárias, e então aparenta visita inesperada. Mas não é convidada de pedra. Tudo está mudando e, antes que seja nunca, será preciso que se estabeleçam novos princípios gerais, a partir dos quais se possa ir reordenando todas as coisas no universo laboral. Porque nenhuma sociedade pode conviver com o caos mais do que algumas poucas horas.
Trabalho flexível, jornada reduzida, trabalhos temporários, subcontratação, cooperativas de trabalho, tudo é possível desde que se acorde uma nova cultura nas relações de trabalho, assegurando respeito mútuo e valores sociais integrativos.
Na verdade, as perdas no plano do emprego nominal poderiam ser recuparedas no processo de estabilidade horizontal. Ou seja, que se configure um contexto econômico associado a garantias sociais de modo a viabilizar que um trabalhador possa percorrer várias modalidades de trabalho e de ócio forçado, sem comprometer a continuidade da vida familiar. Porque os benefícios e salários sociais estariam vinculados a planos coletivos globais e não mais a vínculos individuais de emprego. Uma sociedade do trabalho onde as elites assumem compromisso com o futuro do país e o Estado um papel mais ativo na criação de terreno fértil para relações mais equilibradas e sustentadas na justiça social.
Mas não é este o cenário natural que se aproxima ( e que espanta meu amigo). O que se agrava, se não se adota correção de rumo, é a incidência da economia fictícia, que não depende de produtores ou consumidores, que festeja o negócio duvidoso, o risco delituoso e o rendimento fácil, e não mede conseqüências sociais.
O que meu amigo vê é um mundo na fronteira de dois mundos: o do “day after”, ou a aurora de uma nova sociedade terciária. Quem sabe não se pode construir uma sociedade mais justa e com (um novo tipo de) trabalho para todos!
Meu amigo, enquanto isto, tem razão de estar assustado e sentir-se jurássico.



Publicado no JB em 24/07/97
UMA NOVA SOCIEDADE DO TRABALHO

As notícias recentes sobre o agravamento do desemprego, notoriamente na região paulista, colocam o tema na ordem do dia e criam a motivação e as condições gerais para que o país comece efetivamente a considerar uma política nacional de emprego.
A sociedade ocidental esteve historicamente organizada em torno de uma ética do trabalho. Ser desempregado ,dentro dessa ótica, nunca foi nada fácil, rompe-se a auto-estima, sofre-se discriminação e perdem-se valores fundamentais para a coesão e a solidariedade sociais. Ainda não foi encontrado melhor instrumento para o controle social que a disciplina do trabalho. O desemprego é também um enorme desperdício para o país, na medida em que o trabalho é necessariamente um fator de produção.
Na verdade, o emprego é uma solução para muitos problemas, individuais, sociais e nacionais. O emprego estável possibilita realizar inversões em recursos humanos, programar qualificação e eventualmente reconversão do trabalhador e, em contrapartida, dispor do seu compromisso pessoal em relação aos destinos da empresa. Tudo como requer a nova organização do trabalho e o novo modo de produção: trabalhadores envolvidos com os resultados da empresa, capazes de tomar decisões, criar novas soluções para problemas emergentes, trabalhar em equipe, torcer pela empresa e compartilhar riscos e benefícios.
Essa estratégia de organização social faz empresários e trabalhadores co-responsáveis, juntamente com o governo, pela viabilização de um projeto nacional. Possibilita afinal flexibilizar as relações do trabalho, como medida apropriada para ajustar o mecanismo produtivo aos novos tempos, dentro de um contexto de maior transparência e confiança. Começando por melhorar e ampliar as relações dentro da empresa, um pouco ao modelo japonês, de quem se admiram tanto outros traços e se esquece justamente o vínculo essencial do trabalhador com a empresa.
Entretanto não se trata de mera generosidade da empresa e boa vontade do trabalhador. O conjunto dos resultados, tendo em conta os ganhos a médio e longo prazos, tem de ser atraente e atender a interesses diferenciados dos atores sociais e da sociedade como um todo. As empresas precisam assegurar produtividade, competitividade, ou seja, sustentabilidade. Os trabalhadores aspiram a mais estabilidade, melhores salários, condições de trabalho e participação nos benefícios. O governo supõe crescimento e desenvolvimento econômico, com justiça social.
Como viabilizar essa equação aparentemente contraditória? A chave estaria na articulação de um pacto social que estabeleça uma nova cultura do trabalho e administre ganhos de produtividade. Existe no sistema produtivo brasileiro um enorme território de perdas e desperdícios. O corte de pessoal é, nesse contexto, uma saída demasiado simplista, em termos administrativos e demasiado apressada em termos gerenciais. Com a eliminação de ineficiências, muito possivelmente a permanência do trabalhador pode ser não apenas conveniente, mas também necessária. Existe um amplo espaço –ou gordura—no processo produtivo que pode e deve ser esgotado antes que a dispensa de trabalhadores se mostre inevitável ou justificável. Ganhos de produtividade por melhor desempenho global da empresa podem representar um caminho mais justo de combate ao desemprego. Nesse sentido a formação profissional é imprescindível.
Não existe uma medida que sozinha seja capaz de resolver a questão do emprego. Ao contrário, o tema tem de ser assumido no conjunto da economia e da sociedade. A luta tem de ser ganha em cada oportunidade, em todas as instâncias do poder e da estrutura social. Os encargos sociais no Brasil são elevados, comparativamente a outros países concorrentes, mas o custo global do trabalho é baixo, e muitos componentes inscritos como encargos, se eliminados, teriam de ser fatalmente recuperados nos salários. E como encargos não geram encargos.
O custo-país pode ser um dado estratégico se revisado e assumido também por governo e trabalhadores. Se a população dispõe de boa saúde e tem acesso a boas escolas e bom atendimento hospitalar, se a alimentação básica permanece em níveis acessíveis, as condições de trabalho e de salários podem ser melhor negociadas.
O setor informal já não é um setor residual. Na verdade, representa uma parcela significativa do processo produtivo e tem de receber tratamento apropriado, não do tipo restaurador, não mais como enfermidade do sistema, mas como a pré-configuração de um novo modo de produção.
Acordos, discussões, acordos, há um complicado caminho pela frente, mas é necessário enfrentá-lo se a meta é construir uma nova sociedade do trabalho.

Publicado no JB em 4.10.1996
A EXTRAPOLAÇÃO DA RIQUEZA

Assistimos nos tempos de hoje a uma formidável concentração de poder e riqueza no mundo. Os sistemas que pregavam ideais de igualdade e fraternidade passam por um período de completa privação, sem fôlego para exercitar o mínimo esforço. Por esse lado, a sociedade humana mergulha nas trevas da modernidade. E justamente quando o desenvolvimento tecnológico alcança dimensões fantásticas e afasta os temores históricos sobre os limites de recursos naturais para a sobrevivência da humanidade. Na verdade os limites são impostos por barreiras política e socialmente estabelecidas. A tecnologia faz a sua parte, a humanidade falha no dever de casa. Basta uma viagem rápida à Europa ou aos Estados Unidos, para sentir o volume acumulado de riqueza. Salta aos olhos, não requer instrumentos refinados de mensuração. Há uma riqueza fabulosa concentrada nesses países ou regiões. Paralelamente, dentro dos países a situação se reproduz em desigualdade. Em toda parte aumenta a distância entre os que concentram a riqueza e os que alimentam a grande corrente dos excluídos. São mundos dentro de mundos. A globalização é seletiva e embora estimule alguma transitividade não diminui o impacto da separação de mundos, ou se preferir, de classes sociais. A estratificação social torna as exclusões relativas e inibe sentimentos de solidariedade. Na nova faixa de pobreza as pessoas trabalham e ganham salários ou rendimentos do trabalho ou de pequenos negócios, que mal respondem pela necessidade de manter a vida em seguimento, não permitem alcançar o que antigamente era identificado como “uma existência tranqüila.” Não importa quanto ganhem, o sistema está montado para que no seu nível de vida tenham de gastar compulsoriamente com a casa, os estudos, os seguros, os consumos supérfluos, os créditos, as provisões e o funeral. Não deve sobrar nada no acerto de contas, e os métodos evasivos de aferição dos índices de custo de vida estão montados para assegurar esse propósito. Ou seja, a classe média atua como afluente que deve alimentar o grande rio do sistema econômico nacional e/ou internacional, o grande estuário do sistema capitalista em vigor.
É certo que a economia de escala produziu uma revolução no consumo de massas, todos têm algum acesso a telefone (eventualmente público) transporte, eletrodomésticos, água, etc. As atrações do circo aumentaram muito desde os romanos e os gastos familiares vão no mesmo sentido. Mas a acumulação, que está na base do modelo capitalista, se tornou coisa exclusiva do Estado ou do próprio mundo das finanças, distante do comum dos mortais. Abaixo dos novos pobres ou relativamente pobres, que sentem que têm ainda algo a defender, vêm os “subexistentes”, parias da nova sociedade mundial, que já nada têm a perder e se tornaram praticamente “invisíveis”. Essa forma de controle social sufocante só poderia dar no incentivo à existência marginal da produção e da vida. A massa de marginalidade cresce ameaçadoramente na sociedade moderna e ninguém pode prever até onde poderá chegar, a menos que se recorra a pura ficção, que deve cada vez mais à realidade, como queria Oscar Wilde. Não existem sinais observáveis, em todo o planeta, de que esse processo acumulativo e concentrador mostre cansaço ou acene para uma conciliação reparadora. A globalização é assumida como “fetiche” e mais justifica que explica a fraqueza dos países emergentes diante dos termos perversos da relação de trocas internacionais. Na verdade, a falta de sinais positivos nesse âmbito não pode ser desculpa inibitória para as iniciativas localizadas. A eliminação de índices elevados de inflação , nesses países, representou um avanço na estratégia da igualdade, mas se revelou também insuficiente. Muitos países perderam, com o processo de privatização, uma expressiva oportunidade de interferir na distribuição da riqueza. Tratando-se da alienação de bens públicos, dentro de uma mobilização de recursos financeiros de grande porte, acumulando um enorme poder de direcionamento político, teria sido o caso de integrá-la em uma decidida estratégia de reengenharia social.
Da mesma forma, precisam ser corrigidas as contaminadas relações entre o público e o privado, que têm gerado perdas unilaterais. A empresa econômica, por exemplo, opera no domínio público, utilizando-se de um espaço que foi preparado com recursos de todos os cidadãos, coletivamente, através do Estado. Deve, então, atender a critérios e regras que coloquem o interesse público em pauta, assumindo definitivamente sua parcela de responsabilidade social, não apenas como marketing, mas como compromisso político.
A administração pública, nos países em desenvolvimento, tem de ser encarada como tarefa relevante e todos os meios de assegurar transparência nos negócios públicos precisam ser implantados e desenvolvidos.
O grave é que o sistema político, estratégico nesse processo de discussão, quando o objetivo é implantar democracia em todas as suas necessárias dimensões (política, econômica e social) reflete no momento uma correlação de forças profundamente negativa. E dele se depende para promover e consolidar as transformações.


JB 22/12/00
O FIM DO EMPREGO

Não custa repetir que a mundialização da economia e a revolução tecnológica são responsáveis diretas pelas grande transformação que se dá no mundo do trabalho. Isso para ficar no assunto que nos interessa, porque na verdade os efeitos se traduzem em todas as dimensões da vida humana.
A sociedade tem estado, nos últimos 50 anos, pautada por uma forma de estruturação que tem na ética do trabalho seus fundamentos essenciais. O trabalho tem sido um componente estratégico da organização social. Todos os elementos dessa ordenação vieram de um modo de produção que valoriza três ingredientes: matérias-primas abundantes, mão-de-obra barata e produção em escala.
Como sabemos, essas vantagens estão perdendo alento com a nova lógica de produção. Na verdade, há uma completa subversão de um pacto social do trabalho que vinha administrando as relações sociais até a atualidade.
A longo termo o trabalho continua sendo um componente imprescindível da equação social, mas o seu efeito foi mediatizado pela intensa incorporação tecnológica e pelo grande espaço alcançado pelas intermediações econômicas e financeiras.
Essa tendência é própria do modelo de produção vigente que tem no declínio do fator trabalho um resultado inerente à sua lógica principal. Mas a velha fórmula de que a economia precisa de produtores e de consumidores persiste e esse trabalhador excluído do processo produtivo hoje, terá de ser recuperado em algum ponto do sistema econômico, mais adiante, como consumidor. A globalização tem permitido uma transferência no tempo e uma transposição no espaço, através da ruptura das fronteiras nacionais. Isto tem dado aos produtores a possibilidade de prescindir do consumidor imediato, mas esse círculo terá de se fechar em algum momento, quando os outros produtores de todos os países também exigirem consumidores extra-territoriais. Essa equação não tem prazo, mas terá de ser concluída, por sorte para a humanidade.
A OIT defende a possibilidade do pleno emprego, tomando esse conceito de uma maneira mais ampla que inclui o auto-emprego e uma taxa razoável de disponibilidade ou mobilidade. Medida a chance de emprego pela quantidade de horas trabalhadas no mundo, a equação se apresenta positiva, ou seja, o trabalho continua crescendo. As dificuldades se agravam com a modificação ocorrida na oferta de mão-de-obra, pela assunção do âmbito familiar como unidade produtiva de referência. De fato, o critério de atendimento a necessidades mínimas foi reavaliado não mais em função de um chefe de família responsável pelo orçamento doméstico, mas de toda uma família trabalhando. Embora inquestionável, isso contribuiu para precarizar os salários, trazendo dificuldades adicionais à questão do emprego.
Enfim, se a massa de trabalho continua crescendo, dificilmente se pode imaginar o fim do emprego. O que está obviamente entendido é que o emprego muda drasticamente de perfil. Resta então imaginar como irá configurar-se o novo paradigma nas relações do trabalho. O cenário que se apresenta, atualmente, é o de uma realidade em transformação e não permite uma fotografia de contornos definidos. O que muda significativamente no emprego, com o novo modelo de produção flexível, é o papel da produtividade. Vista com talvez justa desconfiança pelo sindicalismo no passado, a produtividade passa a ser o elemento essencial da nova estratégia. Se antes, no modo de produção com mercado cativo os aumentos salariais e outros benefícios conquistados pelo trabalhador podiam ser transferidos folgadamente aos preços, em um mercado ativo essa compensação encontra mais dificuldade, em função da competitividade a que supostamente as empresas passam a ter no novo modelo econômico.
Setores hoje considerados marginais ou informais não podem mais ser tomados como resíduos do sistema. Ao contrário, estão se tornando a nova onda e portanto há necessidade de delinear-se esse novo cenário para a adoção de medidas de política ativa que possam promover uma justa distribuição dos papéis e dos benefícios na nova sociedade.
Existe, por outro lado, um crescimento do chamado terceiro setor, onde se movimentam atividades não remuneradas e de forte satisfação pessoal. As tendências de envelhecimento da pirâmide social obrigam a considerar a necessidade de um montante em torno de 10% da população ativa passe a uma etapa de desaceleração do trabalho, que não significa necessariamente a parada total. O trabalho poderia ir diminuindo de horas e os salários compartidos entre sistemas de seguridade e empresas.
Está claro que as forças econômicas por si mesmas não gerarão um novo modelo com justiça social. O puro crescimento da economia não é condição suficiente para distribuir a riqueza. É papel do Estado administrar o interesse público, intervindo nesse processo de modo a assegurar uma melhor distribuição de renda, necessária para instalar o equilíbrio social.
Em resumo, o destino do emprego depende de uma ação do Estado, mas está sobretudo nas mãos da própria sociedade, desde que as elites não se isolem do interesse público e participem de esforços integrados para alcançar um novo pacto social no campo do trabalho.

Publicado no JB em 14/02/97